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CURSO DE CAPOEIRA MÍSTICA DO MESTRE JORGE MELCHIADES

Parte Teórica - Aula 6


CULTURA AFRA E CAPOEIRA

A que ansiedade do leitor tentei aplacar provisoriamente, na aula passada, ao fornecer frase genérica sobre a Capoeira Mística? Seria o anseio superficial de uma curiosidade vã? Ou uma gana por compreensão, de fato? Quando o ANSEIO é para compreender, frases e chavões são superficiais demais. Por isso quando alguém pergunta: “O que é Capoeira Mística?”, procuro não responder de modo a amenizar com chavões, um anseio por compreensão. Por outro lado, só entenderá o que é essa ATIVIDADE COLETIVA quem tem PRÉVIA compreensão do que é capoeira. Como poucos sabem o que é capoeira, o ANSEIO expresso pelo aprendiz pode induzir o sujeito que ACREDITA saber, a exercitar PODER. Aí ele faz pose de sábio e exibe o que SABE. Mas, o que SABE? Se apenas memorizou o que outros disseram sobre a capoeira, quem o ouvir também poderá memorizar e REPETIR a outros, que também memorizariam e por sua vez... Pronto. Imensa cadeia de pessoas ACREDITARIA conhecer capoeira, só porque acreditou ANTES, em quem fez pose de “autoridade na matéria”. O pior é que, nesse meio pode aparecer outro alucinado com pose de “gênio”, e sem questionar o que essa gente SABE, afirmar que a cadeia conservou a tradição da primitiva cultura que deu origem à capoeira. Que bobagem, não é? Até porque não vivemos em comunidade ágrafa e fechada, e sim em sociedade aberta a influências estrangeiras de todos os tipos.
Agora, o sujeito poderia firmar “sua autoridade de sábio”, alegando SABER o que é capoeira, não só porque memorizou o que “autoridades” disseram, mas também porque pratica seus movimentos, os toques de berimbau, de pandeiro, de atabaque, o canto, etc., e até ensina isso. Sua CRENÇA, neste caso, seria forte, inabalável... Uma pena, não é mesmo? Pois nenhuma CRENÇA garante que o DISCURSO corresponde à verdade dos fatos a que se refere. A pessoa pode, por exemplo, ACREDITAR que certo talismã dá “poder” e com ele explicar o indiscutível talento artístico que tem, para tocar instrumentos, cantar e compor “de ouvido”, e até ensinar isso muito bem. Leva fé no talismã, porque, apesar de NADA saber sobre o SISTEMA das notações, das pautas e das partituras musicais, exibe grande virtuose PRÁTICA. Ora, por ACREDITAR, a pessoa NÃO COMPREENDE que, igualmente, muitos de nós ensinamos filhos e netos a falar e a entender o idioma Português, sem NADA saber das LEIS que ORGANIZAM os sons nesse SISTEMA lingüístico que é DIFERENTE de outros. Logo, a pessoa NÃO COMPREENDE o óbvio: que para ensinar a PRÁTICA da música ou do idioma basta fazer pose e exibir o que memorizou! Mas, se a pessoa quer ter CONSCIÊNCIA; compreender o que faz, precisa desvendar os PRINCÍPIOS responsáveis pela ORGANIZAÇÃO dos sons, tanto na música como no idioma. E isto exige um estudo das estruturas musicais e lingüísticas.
Quem tenta COMPREENDER atividades humanas verifica que chegamos ao que somos obedecendo a PRINCÍPIOS psicológicos, fisiológicos, biológicos e sociológicos e que nos comportamos na PRÁTICA voluntária e involuntária, de acordo com particular personalidade. A IDENTIDADE de cada um de nós, portanto, DIFERE da de outras pessoas sob muitos aspectos, sem que, de ordinário NADA saibamos das LEIS que levam alguém a tocar e cantar magistralmente “de ouvido”, a falar e a entender o idioma, a ser extrovertido ou introvertido, nervoso ou calmo e a jogar lindamente a capoeira. IGNORAMOS, pois, as LEIS ou os princípios que deram ORDEM estrutural e construiu nosso MODO DE SER, porque atuaram na INCONSCIÊNCIA de quem toca, joga, fala e age. Daí porque, quem ANSEIA compreender uma sistemática ATIVIDADE humana, para saber em que ela DIFERE de outras, precisa envidar estudo específico para tomar CONSCIÊNCIA dos princípios que ordenaram na inconsciência dos que a PRATICAM. Precisa, então, analisar essa atividade com métodos racionais e esforços mentais DIFERENTES, dos que normalmente usa para memorizar e REPETIIR as GENERALIZAÇÕES e as REDUÇÕES alheias.
Por mais “agressivo” ou incômodo que pareça, levanto tema que precisa ser debatido, porque no mínimo devemos tomar CONSCIÊNCIA do que REPRODUZIMOS. Vai que quando DISCURSAMOS sobre capoeira ainda estejamos reproduzindo os PRINCÍPIOS ideológicos dos mercadores de escravos! Há quem diga, por exemplo, que a capoeira EVOLUÍU, ao incluir saltos circenses e métodos de luta no chão: do Jiu-jitsu, do catch-catch-as-can e do Wrestling. Evoluiu mesmo ou perdeu a IDENTIDADE original? Como saber? É óbvio que não basta VER os olhos puxados do praticante ou seus músculos metabolizados e julgar que sim ou não, por ACREDITAR nisto ou naquilo... Para ser correto no JULGAMENTO, não basta ao Juiz Criminal ter PRÉVIA CRENÇA de que o réu é culpado! Neste caso, o que ele tem é uma concepção PRÉVIA à análise que deveria fazer! Logo ele tem é preconceito! O que ele precisa, ANTES de julgar, é analisar o processo e as condições incriminadoras do réu, com cuidado, para se certificar de que foi ele e não outro quem cometeu o delito. Isto, repetindo, ANTES de o condenar a viver sendo IDENTIFICADO na sociedade como vadio, malfeitor, arruaceiro ou criminoso. Cuidado igual deveriam ter os que JULGAM a capoeira e seus praticantes. Há escritores, que iniciam textos perguntando: “Capoeira é dança? É luta? É folclore? Um esporte? É arte? É ritual? Ou a arma de vadios e arruaceiros?”, e depois, sem cuidado algum respondem, generalizando: “É tudo isso e muito mais...” Ora, ao perguntar levantam a JUSTA necessidade de DEFINIR a atividade sob a perspectiva racional, para não CONFUNDI-LA com outras. Mas, ao responder sem definir, são como o juiz que “tapeia” anseios por compreensão e JUSTIÇA, ao condenar um inocente, CRENTE que ele foi o cruel autor de um crime. Ou seja, ANTES de certificar-se da IDENTIDADE exata da capoeira, os que dela falam a JULGAM e a seus praticantes, com preconceito e SEM SABER do que falam. Aí falam, sobretudo, que a capoeira é coisa multiforme, que pode ser CONFUNDIDA com TUDO inclusive com NADA. Waldeloir Rego, um dos pesquisadores mais respeitados, em “Capoeira Angola” (Editora Itapoã, 1968, p. 32), alerta para a “bruta confusão feita pelo renomado Edison Carneiro” em seus livros “Negros Bantos” (1937) e “A Sabedoria Popular” (1957), ao afirmar que “há nove modalidades de capoeira”. “Lastimável é que esse erro vem sendo REPETIDO por quantos o copiam e o mais recente foi Dias Gomes...” Com este modo singelo Waldeloir Rego denunciou a REPRODUÇÃO de erro crasso por alguém que CONFUNDIU a IDENTIDADE da capoeira com a dos diferentes toques de berimbau.
Alguns dos que resvalam nos absurdos sobre capoeira se queixam da escassez de documentos sobre seus momentos iniciais, mas ao invés de verem no problema dessa indefinição um desafio a ser resolvido, parecem ver apenas a chance de fazer pose de sábio e de encher livros e mais livros com conversa fiada, mitos, lendas e estórias fantásticas, bem ao gosto dos que ANSEIAM, na verdade, fazer sucesso no MERCADO literário engabelando espíritos ingênuos e deslumbrados. Mais especificamente, o problema que envolve essa cria da cultura afra no Brasil, parece estimular em alguns autores, não os talentos e virtudes para a pesquisa séria e racional, mas a ostentação da pose de “sábio” através de muita poesia em textos delirantes, às vezes até com certos pendões artísticos e LITERÁRIOS, mas desviados de objetivos históricos, científicos e racionais. No fim apresentam a capoeira como se ela tivesse sido criada por portugueses escravocratas, que tendo o ESPÍRITO dirigido por ANSEIOS mercantis, desprezaram os ANSEIOS dos negros, expressos na PRÁTICA da linguagem oral, corporal e simbólica de suas ATIVIDADES.
A respeito dos negros oriundos da África escreveu Ronilda Iyakemi Ribeiro na pág. 178 de seu livro, “Alma Africana no Brasil – Os iorubas” 1996: “Sua rica cultura, seus princípios de sabedoria, sua magnífica compreensão da importância do homem, da natureza e das relações entre o natural e o espiritual permanecem subestimados ou totalmente negados.”
ACREDITAR saber não é sábio, e quem se propõe a COPREENDER o que é a capoeira, sem levar em conta os ANSEIOS do seu povo criador ou da CULTURA AFRA – que se fragmentou e NÃO EVOLUIU no Brasil – inevitavelmente só pode REPRODUZIR anseios próprios, que refletem a cultura mercantilista em que vive. Esta sim, EVOLUIU do grosseiro e brutal tráfico de escravos, do chicote e das correntes de ferro VISÍVEIS, para meios INVISÍVEIS e mais sutis ou “encobertos”, de submeter, oprimir e escravizar.
A reprodução das GENERALIZAÇÕES e REDUÇÕES mercantilistas é modo eficaz de ocultar a VERDADEIRA IDENTIDADE da capoeira e de preservar o velho DESPREZO aos ANSEIOS culturais e espirituais do povo que a criou. Mário Quintana definiu os “verdadeiros analfabetos” enquanto “os que aprenderam a ler e não lêem”, tendo em vista, certamente, o analfabeto que só lê propaganda e textos curtos ou de conteúdos superficiais. Ele mostra raro ou nenhum ANSEIO de adquirir compreensão que ultrapasse a superfície dos significados mais evidentes; EVITA ir fundo nos motivos que levaram à escravidão. E muitos autores, a pretexto de escrever textos “fáceis” para os leitores “que não lêem”, não aprofundam questionamentos sobre a cultura que mantém a predominância de leitores superficiais. Eternizam a superficialidade, portanto, na medida que a REPRODUZEM. Ora, escrever sem profundidade significa preservar a falta de compreensão do que é REPRODUZIDO, tanto de quem escreve quanto de quem lê. Logo, também preserva na inconsciência a maldade do racismo e dos preconceitos. É claro que tais escritos encontram a adesão fértil do fã da superficialidade, que não VER certas tendências humanas e próprias, provocariam vergonha e ANSEIOS de trabalhosa MUDANÇA evolutiva, se fossem vistas. Aliás, é para evitar tal visão “agressiva” ou “incômoda” que abusa da CEGUEIRA.
Um Juiz consciente de que é corrupto, pode JULGAR e condenar DOIS pobres “bodes expiatórios” ou “laranjas”, tendo o OBJETIVO de deixar de FORA do SISTEMA presidiário, na impunidade e “encobertos”, todos os que lucram com a continuidade do delito, inclusive ele. É com idêntico motivo INCOSCIENTE e egoísta de evitar “incômodos” e de desfrutar das vantagens estabelecidas ideologicamente que muitos olham para o SISTEMA COLETIVO da roda formada por vários que tocam, cantam, batem palmas, etc., e vêem apenas DOIS, “dançando”, “lutando” ou “jogando”. De qualquer modo, eis aí um efeito do PRINCÍPIO MERCANTILISTA em ação.
Estou provando racionalmente e através de fatos experimentais, que sob influência da cultura mercantil vemos MENOS onde há MAIS e que alguns escritores influenciados “resolvem” o problema da falta de definição da capoeira aproveitando-se da indefinição para dar vazão ao INTERESSE mercantil, INCONSCIENTE ou consciente, de entulhar o mercado com ficções e baboseiras destinadas a seduzir e a envolver consumidores imaturos. Tal postura “satisfaz” idênticos anseios dos que criam e recriam DISCURSOS sobre a capoeira e outros assuntos.
Influenciadas pelo mercantilismo, que evoluiu dos modos grosseiros e evidentes de ESCRAVIZAR, para sofisticados métodos psicológicos, as pessoas ACREDITAM não serem racistas nem preconceituosas, AGINDO na prática, CEGAS pelo racismo e preconceitos. Por isso, provo que não ANSEIO pelo mercado dos leitores superficiais ao apresentar ao leitor a CAPOEIRA MÍSTICA, propondo ANTES, não que ACREDITE em mim, mas que se faça um estudo analítico, profundo e estrutural da PRÁTICA da capoeira, com o fim de resolver o problema de sua indefinição. Atentos, para não nos deixar arrastar por anseios mercantis, talvez possamos conseguir esse OBJETIVO JUNTOS ou fracassar, dependendo de desnudar ANTES, nossos preconceitos para os compreendermos melhor e superá-los. Em seguida falaremos de Capoeira Mística, porque sem esta PRÉVIA providência iríamos discuti-la CRENTES que possuímos razão, mas sem usá-la, para preservar PRÉVIOS conceitos (preconceitos) e contrariando importante PRINCÍPIO da exposição racional que é o da necessidade de definição dos termos usados no encadeamento das idéias.

A IDEOLOGIA MERCANTIL

GENERALIZAR é tornar geral, vulgarizar, tornar comum a muitos indivíduos qualidades de poucos ou fictícias. REDUZIR é tornar particular o que é geral; SUPERFICIAL o que é PROFUNDO, menor o que é maior; MENOS o que é MAIS; é restringir o que é mais amplo, ou separar, desagregar algo de uma combinação, de um conjunto ou composto. De ordinário realizamos freqüentemente essas duas operações mentais de modo consciente ou inconsciente, não só para aprender e compreender os mistérios da vida, como também para dar a APARÊNCIA superficial de possuir compreensão e sabedoria, com o fim de classificar ou JULGAR pessoas e coisas atendendo a propósitos que não nos orgulhamos de ter e por isso insistimos em não os VER. O racismo e os preconceitos se apresentam para atender a tais propósitos. Ora, na história da humanidade se tem generalizado as virtudes boas de poucos INDIVÍDUOS a um COLETIVO, seja este um grupo social, classe, povo ou “raça”, e a outro grupo social, povo, classe ou “raça”, se tem generalizado os defeitos e desdouros... Sob o comando do nazismo de Hitler, se atribuiu aos alemães a “pureza da raça”, as qualidades da inteligência, da nobreza de caráter, a bondade cristã etc., de tal modo que NÃO VIAM as atrocidades cometidas contra os semitas e outros, aos quais se atribuiu a INFERIORIDADE e a perfídia. Na Idade Média, aos que nasciam na nobreza se atribuiu “sangue azul” e virtudes ideais; aos plebeus a inferioridade vulgar. Muitos da elite burguesa atual pensam como nobres medievais, e os comunistas, socialistas, anarquistas e democratas, na PRÁTICA adeptos de um paternalismo safado e oportunista, generalizam a INDIVÍDUOS de classes menos favorecidas a gana de produzir riquezas e as virtudes da dedicação ao trabalho, que nem todos têm; à média e à alta burguesia generalizam o parasitismo social. Quando generalizamos virtudes “boas e superiores” a um grupo, classe, categoria de pessoas ou povo ao qual pertencemos, e as deficiências ou “inferioridades” a outros, sejam grupo, classe ou povo, reafirmamos arrogante CRENÇA de sermos genericamente MELHORES e superiores a outros com os quais nos comparamos. Estes são menosprezados já na generalização, pois com ela satisfazemos INCONCIENTE ANSEIO por grandeza, sucesso e superioridade... Não é muito difícil perceber que essa arrogante postura divide os homens entre “superiores” e “inferiores” e dissemina o ódio, porque os que ACREDITAM ser genericamente MELHORES consideram-se no DIREITO de submeter outros ao seu PODER. Os outros, por sua vez, LUTAM, para conquistar e gozar os privilégios da “superioridade” genérica que também ACREDITAM merecer. Essa é a ESTUPIDEZ crônica que se apresenta na história da humanidade, e a CEGUEIRA que causa impede os homens de VER, que na realidade TODAS as criaturas da natureza e pessoas possuem ESPECÍFICAS virtudes, funções, artes, atividades e encargos, e na especialidade umas apresentam MELHOR desempenho que outras. Um colibri, por exemplo, voa MELHOR do que eu, além de ser MAIS bonito e delicado. Uma minhoca vive MELHOR, com a extremidade onde possui boca e se supõe a “cabeça”, enfiada na terra, do que eu. Pelé sempre jogou bola MELHOR do que eu e assim por diante... Reconhecer isso, porém, não torna esses entes genericamente melhores do que eu. E até posso ACREDITAR que sou genericamente melhor do que a minhoca e esmagá-la com a sola do sapato, mas isto não me torna mais competente que ela na FUNÇÃO que realiza na natureza. Ao contrário, o ato desnecessário de força contra a minhoca só revela minha IGNORÂNCIA diante da natureza, grande covardia perante seres mais frágeis e imensa ESTUPIDEZ.
Então, porque a covarde ESTUPIDEZ é preservada de modo velado, consciente ou inconscientemente, a escravidão é prática tão antiga quanto a humanidade e beneficia sempre aos que ACREDITAM desfrutar, por “direito”, os privilégios do PODER mantido pela FORÇA. A escravidão se deu entre todos os povos e até entre nativos do Brasil, da África e de outras partes. Na Antiguidade e Idade Média, as pessoas caíam VÍTIMAS da escravidão, em geral, tornando-se presas de guerra, de raptos, de pirataria, por nascerem filhos de escravos, por não pagar dívidas, por serem crianças rejeitadas e vendidas, por adesão voluntária em caso de fome... Não se fazia distinção entre quem podia ser escravo e pessoas de qualquer cor ou nação eram vitimadas. A idéia de escravizar outrem não repugnava ninguém, pois era considerada natural, normal, razão pela qual NINGUÉM VIA motivos para questionar sua imoralidade, até a Idade Moderna e Contemporânea.
Durante a Antiguidade a propriedade de escravos tornou-se símbolo de poder social, político e financeiro, e foram surgindo MERCADORES especializados em raptar, capturar, comprar e VENDER homens para atender a esse ANSEIO por poder. Nos fins da Idade Média, então, na época das grandes conquistas marítimas e coloniais o PRINCÍPIO MERCANTIL do lucro, da vantagem econômica transformou em MERCADORIA preferencial, para negociar, colocar a venda, os humanos de cor negra. A partir de então, alguns traços da APARÊNCIA SUPERFICIAL, como cor mais escura, cabelo pixaim, nariz largo e lábios grossos IDENTIFICARIAM o escravo “normal”, “natural”; homens cujo destino foi preconcebido pelos seus raptores.
Então, o ANSEIO ganancioso e mercantil levou à PRÁTICA a GENERALIZAÇÃO do conceito “mercadoria” para abranger pessoas nas “propriedades” a que se tinham direitos legais. A necessidade de mão de obra nas colônias ativou e causou o desenvolvimento de uma especialização profissional que se abastecia na África. Deste continente, homens, mulheres e crianças foram violentamente arrancados e REDUZIDOS a CORPOS sem alma ou de espíritos atrofiados, destinados a trabalhar na agricultura, na mineração, nas tarefas domésticas e para dar prazer a seus donos. Portanto, os ANSEIOS interesseiros dos “Judas” que capturavam gente para vender se locupletavam ao realizar os ANSEIOS dos CONSUMIDORES de conforto, de lucro, de vantagens e de prazer que tais corpos podiam proporcionar.
O leitor deve verificar de pronto, que não abordo a escravidão como problema específico de brancos e negros porque não GENERALIZO a virtude da inocência para uns e a de “culpa” a outros. Não REDUZO uns à “inferioridade moral” nem GENERALIZO a outros a virtude sublime de mártires históricos. Não abordo o tema como uma exigência de revanche da “raça inocente” frente à “perversa”, nem da “classe produtiva” contra a “parasita”. Se a isto fizesse daria vazão à ESTUPIDEZ racista e preconceituosa, que CEGA e escraviza; dividiria a humanidade entre bons e maus, segundo o medíocre e delirante PODER de JULGAR e de condenar que ACREDITARIA ter... Questiono, apenas, qualquer “direito humano” que premia o USO DA FORÇA animal e irracional, como o desprezo da INTELIGÊNCIA RACIONAL.
Fato inconteste é que, nos fins da Idade Média, com as conquistas coloniais e a ascensão econômica e POLÍTICA da burguesia, a ESCRAVIDÃO se firmou como ATIVIDADE RACISTA NA PRÁTICA, ainda que as teorias raciais só surgissem mais tarde, no século XIX. Os estigmas e os estereótipos que REDUZEM o povo negro a MENOS, ou à permanente situação de “inferioridade”, se firmaram com a preferência dada a ele na instituição econômica e escravista de vocação MERCANTIL. Aí a discriminação se tornou legal, oficial e moral, ao ser regulamentada como comércio organizado internacionalmente, para atender às demandas coloniais. JUSTIFICAVA esse comércio canalha e estúpido, portanto, a satisfação dos ANSEIOS comerciais, econômicos, políticos, ou o oportunismo safado, típico das almas egoístas. Entre os cristãos da Europa, qualquer PROBLEMA de ordem moral era estímulo para a elaboração de IDÉIAS racionalizadas, para mascarar os ANSEIOS mercantis... Uma “boa” IDÉIA, era a que REDUZIA os negros à inferioridade, destituindo-os de talentos e virtudes típicas da alma racional. Alegavam, e aí não só os cristãos, que os negros eram bárbaros, canibais, quase como animais e que a escravidão só lhes faria bem, pois os redimia levando-os “à salvação eterna” (leia-se os Sermões XIV e XXVII do Rosário, do Padre Antônio Vieira). Propagava-se essa idéia que muitos REPETIRIAM como cúmplices da infâmia, entre eles escritores e educadores sequiosos de status econômico, social e político, também “religiosos”, “cientistas” e outras “autoridades” intelectuais. Ibne Kaldum, tido como grande historiador muçulmano do séc. XIV divulgou que “os negros de humano tinham pouco, sendo mais semelhantes às bestas Irracionais” (A Manilha e o Libambo, 2002, de Alberto da Costa e Silva, p.57). M.Long escreveu: “Penso que não seria desonroso para uma mulher hotentote ter um orangotango como marido” (O Negro No Brasil, 1999, de Júlio José Chiavenato, p.73). O reverendo Josiah Priest, em 1852 declarou que os negros não pertenciam á raça humana “sendo de toda evidência que sua constituição é perfeitamente simiesca” (op. cit., p.74). Em 1781, o Governador da Virgínia, Thomas Jefferson, se pronunciou sobre as “distinções reais (entre brancos e negros) que a própria natureza havia criado” e que tornariam os negros “menos afeitos ao pensamento criativo e à inovação” (Hebe Maria Mattos, Escravidão no Brasil Monárquico, 2000).
Na cultura MERCANTIL, portanto, a idéia de “inferioridade natural” do negro se reproduziu, norteando pensamentos e ações. Os que a PRODUZIRAM, mancomunados com os que a REPRODUZIRAM, espalharam “aos quatro cantos do mundo” que as ATIVIDADES do negro eram DESPROVIDAS DE INTELIGÊNCIA HUMANA. O tempo passou, e depois de condicionada, essa idéia passou, sem maiores críticas, para as gerações seguintes, de brancos, índios, negros e mestiços, de modo que ainda hoje sabemos de vários incidentes, conflitos e processos porque alguém chamou outro de “macaco”. Até o povo brasileiro, que possui grande descendência genética e herança cultural dos negros já foi insultado por estrangeiros que usaram a expressão “los macaquitos”.
O tempo passou e novas exigências se apresentaram aos que exercitavam ou queriam exercitar PODER econômico e político, e a ATIVIDADE MERCANTIL se adaptou para atendê-las, EVOLUINDO para “inocentes” e sutis manifestações conscientes e INCONSCIENTES de preconceitos velados e de racismo paternalista. E assim “evoluídos”, alguns escritores, historiadores, folcloristas e cidadãos comuns, exatamente como ontem, ACREDITAM serem bondosos cristãos ou inteligentes “liberais” enquanto REPETEM a velada racionalização mercantilista e racista, segundo a qual, realmente, os negros seriam INCAPAZES de desenvolver um SISTEMA pleno de coreografia, música, técnica, poesia e beleza artística, tendo o inteligente OBJETIVO humano de RESISTIR à tentativa de mutilar as virtudes e talentos do ESPÍRITO africano. Pela idéia mercantilista, negros e índios só fariam coreografia, música, técnica, poesia e beleza artística acidentalmente e indiretamente, ao dar vazão ao cabritismo sensual e lascivo, ou quando, como macacos, IMITARIAM coices de burros e marradas de bodes, nas LUTAS ou conflitos de FORÇA que tais irracionais travam entre si.
REPRODUZINDO essa idéia se atribui aos negros, a pretensão absurda e pouco inteligente de criar a bela arte da capoeira, apenas para enfrentar desarmados as armas de fogo, canhões, cães, espadas, facões, NAVALHAS e paus, normalmente manejados por ferozes, calejados e valentes homens a serviço da sociedade escravocrata. Não digo que alguns valentes não tiveram feitos memoráveis usando a agilidade e a destreza adquirida na capoeira! Digo que esses casos específicos não deveriam ser GENERALIZADOS com o fim de REDUZIR a MENOS a imensa MAIORIA dos negros, tanto do Brasil como fora dele, pois muitos combatem a escravidão, a segregação, o racismo e o preconceito usando alta INTELIGÊNCIA, como José do Patrocínio, Luiz Gama, Martin Luther King, Nelson Mandela e outros que se consagraram líderes intelectuais. Em todo o planeta há provas históricas e óbvias de que a LUTA pela LIBERDADE, através do confronto belicoso, intelectual ou por resistência pacífica, sempre é com bravura e valentia, sendo que estas virtudes resultam de disposições específicas do ESPÍRITO e não de uma generalizada destreza emprestada ao CORPO pela prática de qualquer ginástica. Os que RESISTIRAM e se empenharam heroicamente na LUTA pela civilidade humana e contra a escravidão, cada qual a seu modo, não devem ser privados das virtudes do ESPÍRITO, como valentia e INTELIGÊNCIA, e menosprezados ante a exaltação da FORÇA ANIMAL e corpórea pelos reprodutores da ideologia mercantil. E creio que foi para que o genial líder e heróico estrategista militar e guerreiro, Zumbi dos Palmares, não fosse mais usado como instrumento de menosprezo a outros homens e mulheres negros, que o Mestre Damião demonstrou ser falsa a idéia dele ter sido capoeirista (Revista Praticando Capoeira, número 28, p.36). É ACREDITANDO na inferioridade dos negros e REPRODUZINDO o menosprezo a suas virtudes culturais e racionais que o indivíduo IDENTIFICA a capoeira como PORCARIA qualquer; tão inútil à realização de OBJETIVOS espirituais e INTELIGENTES como outras mercadorias disponíveis no mercado. Para disfarçar ou “maquiar” as “marcas da cirurgia” que extirpou a virtude ESPIRITUAL dessa criação dos negros a “embrulham” com lendas e mitos pouco inteligentes, mas atraentes aos OLHOS CEGOS dos consumidores do mercado racista e preconceituoso.

O SISTEMA

REDUZINDO a capoeira a bem MENOS do que é e privando-a de sua essência ESPIRITUAL o sujeito “argumenta” que há consagrados sambistas e aplicadores de pernadas, formidáveis capoeiristas e geniais folcloristas e historiadores afirmando que pernada é uma forma de capoeira. Aí, oro a Deus pedindo milagrosa paciência infinita e passo a alertar que existem outros consagrados sambistas e aplicadores de pernadas, capoeiristas formidáveis e geniais folcloristas e historiadores afirmando exatamente o contrário! Em seguida pergunto: em quem ACREDITAR? Se neste ou naquele REPRODUZIMOS um ou outro como papagaios e ficamos sem saber quem tem RAZÃO. E só pode ter RAZÃO quem prova que tem, RACIOCINANDO, não REPETINDO o que outros dizem. Aliás, só quem raciocina é capaz de IDENTIFICAR a razão e quem a USA.
Todavia, ACREDITANDO que alcançarei o milagre da paciência infinita explico que quando vários elementos de um CONJUNTO se relacionam entre si de modo ORGANIZADO, essa ORDEM segue PRINCÍPIOS e dizemos que formam um SISTEMA. Quem afirma que pernada é uma espécie de capoeira, sustenta, em outras palavras, que o elemento PERNA, retirado do sistema PATO é outra forma ou espécie de pato; outro pato. Mas já vimos que a perna do pato, integrada a outros elementos como penas, ossos, músculos, bico, olhos, asas etc., formam um CONJUNTO de PARTES conjugadas entre si num SISTEMA ORGÂNICO com forma de pato. As PARTES de tal SISTEMA funcionam na relação entre si, obedecendo a PRINCÍPIOS INTEGRADORES, sendo por isso que as pernas se movem COORDENADAS com o todo, dando ao corpo um andar autônomo, cheio de ginga e de bossa, geralmente acompanhados de espontâneos e alegres quá, quá, quá, quá. Observe, caro leitor, que inequivocamente as PARTES do sistema realizam os OBJETIVOS DO PATO e não os de um PORCO como o Napoleão, do livro de George Orwel, “A Revolução dos Bichos”, que para exercitar PODER se perde nas contradições. Ao se dirigir em direção ao alimento, o pato não tropeça nos próprios calcanhares nem chafurda na lama, não por não ter calcanhares e sim porque suas patas não se movem ao acaso nem em direções opostas, chafurdando na LUTA de uma contra a outra. Pernas são INSTRUMENTOS que coesas e harmônicas ao SISTEMA permitem ao pato EVOLUIR no espaço e no tempo quando anda, nada e voa.
Todas as partes fisiológicas e comportamentais do SISTEMA pato têm as ATIVIDADES integradas para a realização dos OBJETIVOS ou fins do SISTEMA “pato”. Sendo assim com o pato, devemos ponderar que o SISTEMA “capoeira” tenha sido criado e desenvolvido por negros para servir aos OBJETIVOS dos seus criadores, não os de seus opressores. Se a isto negarmos estamos destituindo os negros da inteligência. Afirmar que a capoeira, originalmente realiza os interesses dos mercantilistas escravocratas é o mesmo que matar o pato e arrancar uma de suas pernas para dá-la ao porco. Ela não mais pertence ao SISTEMA pato, porque não obedece aos originais princípios de funcionamento nem realiza os OBJETIVOS do pato, e sim os fins de quem vê nas criaturas de Deus ou da natureza CORPOS destituídos de alma, que ele pode esmagar, matar e mutilar impunemente para satisfazer seus interesses egoístas. Com relação à pernada, já vimos que nunca foi PARTE da capoeira, porque nesta nunca houve golpe chamado pernada. Mas se alguém insiste em dizer que ela já foi sim, PARTE da capoeira, e ainda por cima oferece como “prova” uma REPETIÇÃO do que outro disse, desisto, para não perder mais tempo com cabeçudos.
Afinal, milagres não ocorrem como eu gostaria e minha paciência se esgota fácil diante de quem sequer percebe o mínimo, isto é, que se um dia foi, então não é mais.
Ora bolas!

Jorge Melchiades Carvalho Filho