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Livros do Prof. Jorge Melchiades
Um presente para você !
Ótima oportunidade ao leitor, de conhecer alguns conceitos básicos da teoria freudiana através de uma sintética, interessante e revolucionária versão não materialista. Ao relatar O SONHO que teve com o criador da Psicanálise, o autor vai expondo, de maneira acessível a qualquer pessoa interessada, os passos primordiais para o início de uma ANÁLISE pessoal, que leve em conta os anseios mais PROFUNDOS da alma.
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CURSO DE CAPOEIRA MÍSTICA DO MESTRE JORGE MELCHIADES
Parte Teórica - Aula 6
CULTURA AFRA E CAPOEIRA
A que ansiedade do leitor tentei aplacar provisoriamente, na aula passada, ao
fornecer frase genérica sobre a Capoeira Mística? Seria o anseio superficial de
uma curiosidade vã? Ou uma gana por compreensão, de fato? Quando o ANSEIO é para
compreender, frases e chavões são superficiais demais. Por isso quando alguém
pergunta: “O que é Capoeira Mística?”, procuro não responder de modo a amenizar
com chavões, um anseio por compreensão. Por outro lado, só entenderá o que é
essa ATIVIDADE COLETIVA quem tem PRÉVIA compreensão do que é capoeira. Como
poucos sabem o que é capoeira, o ANSEIO expresso pelo aprendiz pode induzir o
sujeito que ACREDITA saber, a exercitar PODER. Aí ele faz pose de sábio e exibe
o que SABE. Mas, o que SABE? Se apenas memorizou o que outros disseram sobre a
capoeira, quem o ouvir também poderá memorizar e REPETIR a outros, que também
memorizariam e por sua vez... Pronto. Imensa cadeia de pessoas ACREDITARIA
conhecer capoeira, só porque acreditou ANTES, em quem fez pose de “autoridade na
matéria”. O pior é que, nesse meio pode aparecer outro alucinado com pose de
“gênio”, e sem questionar o que essa gente SABE, afirmar que a cadeia conservou
a tradição da primitiva cultura que deu origem à capoeira. Que bobagem, não é?
Até porque não vivemos em comunidade ágrafa e fechada, e sim em sociedade aberta
a influências estrangeiras de todos os tipos.
Agora, o sujeito poderia firmar “sua autoridade de sábio”, alegando SABER o que
é capoeira, não só porque memorizou o que “autoridades” disseram, mas também
porque pratica seus movimentos, os toques de berimbau, de pandeiro, de atabaque,
o canto, etc., e até ensina isso. Sua CRENÇA, neste caso, seria forte,
inabalável... Uma pena, não é mesmo? Pois nenhuma CRENÇA garante que o DISCURSO
corresponde à verdade dos fatos a que se refere. A pessoa pode, por exemplo,
ACREDITAR que certo talismã dá “poder” e com ele explicar o indiscutível talento
artístico que tem, para tocar instrumentos, cantar e compor “de ouvido”, e até
ensinar isso muito bem. Leva fé no talismã, porque, apesar de NADA saber sobre o
SISTEMA das notações, das pautas e das partituras musicais, exibe grande
virtuose PRÁTICA. Ora, por ACREDITAR, a pessoa NÃO COMPREENDE que, igualmente,
muitos de nós ensinamos filhos e netos a falar e a entender o idioma Português,
sem NADA saber das LEIS que ORGANIZAM os sons nesse SISTEMA lingüístico que é
DIFERENTE de outros. Logo, a pessoa NÃO COMPREENDE o óbvio: que para ensinar a
PRÁTICA da música ou do idioma basta fazer pose e exibir o que memorizou! Mas,
se a pessoa quer ter CONSCIÊNCIA; compreender o que faz, precisa desvendar os
PRINCÍPIOS responsáveis pela ORGANIZAÇÃO dos sons, tanto na música como no
idioma. E isto exige um estudo das estruturas musicais e lingüísticas.
Quem tenta COMPREENDER atividades humanas verifica que chegamos ao que somos
obedecendo a PRINCÍPIOS psicológicos, fisiológicos, biológicos e sociológicos e
que nos comportamos na PRÁTICA voluntária e involuntária, de acordo com
particular personalidade. A IDENTIDADE de cada um de nós, portanto, DIFERE da de
outras pessoas sob muitos aspectos, sem que, de ordinário NADA saibamos das LEIS
que levam alguém a tocar e cantar magistralmente “de ouvido”, a falar e a
entender o idioma, a ser extrovertido ou introvertido, nervoso ou calmo e a
jogar lindamente a capoeira. IGNORAMOS, pois, as LEIS ou os princípios que deram
ORDEM estrutural e construiu nosso MODO DE SER, porque atuaram na INCONSCIÊNCIA
de quem toca, joga, fala e age. Daí porque, quem ANSEIA compreender uma
sistemática ATIVIDADE humana, para saber em que ela DIFERE de outras, precisa
envidar estudo específico para tomar CONSCIÊNCIA dos princípios que ordenaram na
inconsciência dos que a PRATICAM. Precisa, então, analisar essa atividade com
métodos racionais e esforços mentais DIFERENTES, dos que normalmente usa para
memorizar e REPETIIR as GENERALIZAÇÕES e as REDUÇÕES alheias.
Por mais “agressivo” ou incômodo que pareça, levanto tema que precisa ser
debatido, porque no mínimo devemos tomar CONSCIÊNCIA do que REPRODUZIMOS. Vai
que quando DISCURSAMOS sobre capoeira ainda estejamos reproduzindo os PRINCÍPIOS
ideológicos dos mercadores de escravos! Há quem diga, por exemplo, que a
capoeira EVOLUÍU, ao incluir saltos circenses e métodos de luta no chão: do
Jiu-jitsu, do catch-catch-as-can e do Wrestling. Evoluiu mesmo ou perdeu a
IDENTIDADE original? Como saber? É óbvio que não basta VER os olhos puxados do
praticante ou seus músculos metabolizados e julgar que sim ou não, por ACREDITAR
nisto ou naquilo... Para ser correto no JULGAMENTO, não basta ao Juiz Criminal
ter PRÉVIA CRENÇA de que o réu é culpado! Neste caso, o que ele tem é uma
concepção PRÉVIA à análise que deveria fazer! Logo ele tem é preconceito! O que
ele precisa, ANTES de julgar, é analisar o processo e as condições
incriminadoras do réu, com cuidado, para se certificar de que foi ele e não
outro quem cometeu o delito. Isto, repetindo, ANTES de o condenar a viver sendo
IDENTIFICADO na sociedade como vadio, malfeitor, arruaceiro ou criminoso.
Cuidado igual deveriam ter os que JULGAM a capoeira e seus praticantes. Há
escritores, que iniciam textos perguntando: “Capoeira é dança? É luta? É
folclore? Um esporte? É arte? É ritual? Ou a arma de vadios e arruaceiros?”, e
depois, sem cuidado algum respondem, generalizando: “É tudo isso e muito
mais...” Ora, ao perguntar levantam a JUSTA necessidade de DEFINIR a atividade
sob a perspectiva racional, para não CONFUNDI-LA com outras. Mas, ao responder
sem definir, são como o juiz que “tapeia” anseios por compreensão e JUSTIÇA, ao
condenar um inocente, CRENTE que ele foi o cruel autor de um crime. Ou seja,
ANTES de certificar-se da IDENTIDADE exata da capoeira, os que dela falam a
JULGAM e a seus praticantes, com preconceito e SEM SABER do que falam. Aí falam,
sobretudo, que a capoeira é coisa multiforme, que pode ser CONFUNDIDA com TUDO
inclusive com NADA. Waldeloir Rego, um dos pesquisadores mais respeitados, em
“Capoeira Angola” (Editora Itapoã, 1968, p. 32), alerta para a “bruta confusão
feita pelo renomado Edison Carneiro” em seus livros “Negros Bantos” (1937) e “A
Sabedoria Popular” (1957), ao afirmar que “há nove modalidades de capoeira”.
“Lastimável é que esse erro vem sendo REPETIDO por quantos o copiam e o mais
recente foi Dias Gomes...” Com este modo singelo Waldeloir Rego denunciou a
REPRODUÇÃO de erro crasso por alguém que CONFUNDIU a IDENTIDADE da capoeira com
a dos diferentes toques de berimbau.
Alguns dos que resvalam nos absurdos sobre capoeira se queixam da escassez de
documentos sobre seus momentos iniciais, mas ao invés de verem no problema dessa
indefinição um desafio a ser resolvido, parecem ver apenas a chance de fazer
pose de sábio e de encher livros e mais livros com conversa fiada, mitos, lendas
e estórias fantásticas, bem ao gosto dos que ANSEIAM, na verdade, fazer sucesso
no MERCADO literário engabelando espíritos ingênuos e deslumbrados. Mais
especificamente, o problema que envolve essa cria da cultura afra no Brasil,
parece estimular em alguns autores, não os talentos e virtudes para a pesquisa
séria e racional, mas a ostentação da pose de “sábio” através de muita poesia em
textos delirantes, às vezes até com certos pendões artísticos e LITERÁRIOS, mas
desviados de objetivos históricos, científicos e racionais. No fim apresentam a
capoeira como se ela tivesse sido criada por portugueses escravocratas, que
tendo o ESPÍRITO dirigido por ANSEIOS mercantis, desprezaram os ANSEIOS dos
negros, expressos na PRÁTICA da linguagem oral, corporal e simbólica de suas
ATIVIDADES.
A respeito dos negros oriundos da África escreveu Ronilda Iyakemi Ribeiro na
pág. 178 de seu livro, “Alma Africana no Brasil – Os iorubas” 1996: “Sua rica
cultura, seus princípios de sabedoria, sua magnífica compreensão da importância
do homem, da natureza e das relações entre o natural e o espiritual permanecem
subestimados ou totalmente negados.”
ACREDITAR saber não é sábio, e quem se propõe a COPREENDER o que é a capoeira,
sem levar em conta os ANSEIOS do seu povo criador ou da CULTURA AFRA – que se
fragmentou e NÃO EVOLUIU no Brasil – inevitavelmente só pode REPRODUZIR anseios
próprios, que refletem a cultura mercantilista em que vive. Esta sim, EVOLUIU do
grosseiro e brutal tráfico de escravos, do chicote e das correntes de ferro
VISÍVEIS, para meios INVISÍVEIS e mais sutis ou “encobertos”, de submeter,
oprimir e escravizar.
A reprodução das GENERALIZAÇÕES e REDUÇÕES mercantilistas é modo eficaz de
ocultar a VERDADEIRA IDENTIDADE da capoeira e de preservar o velho DESPREZO aos
ANSEIOS culturais e espirituais do povo que a criou. Mário Quintana definiu os
“verdadeiros analfabetos” enquanto “os que aprenderam a ler e não lêem”, tendo
em vista, certamente, o analfabeto que só lê propaganda e textos curtos ou de
conteúdos superficiais. Ele mostra raro ou nenhum ANSEIO de adquirir compreensão
que ultrapasse a superfície dos significados mais evidentes; EVITA ir fundo nos
motivos que levaram à escravidão. E muitos autores, a pretexto de escrever
textos “fáceis” para os leitores “que não lêem”, não aprofundam questionamentos
sobre a cultura que mantém a predominância de leitores superficiais. Eternizam a
superficialidade, portanto, na medida que a REPRODUZEM. Ora, escrever sem
profundidade significa preservar a falta de compreensão do que é REPRODUZIDO,
tanto de quem escreve quanto de quem lê. Logo, também preserva na inconsciência
a maldade do racismo e dos preconceitos. É claro que tais escritos encontram a
adesão fértil do fã da superficialidade, que não VER certas tendências humanas e
próprias, provocariam vergonha e ANSEIOS de trabalhosa MUDANÇA evolutiva, se
fossem vistas. Aliás, é para evitar tal visão “agressiva” ou “incômoda” que
abusa da CEGUEIRA.
Um Juiz consciente de que é corrupto, pode JULGAR e condenar DOIS pobres “bodes
expiatórios” ou “laranjas”, tendo o OBJETIVO de deixar de FORA do SISTEMA
presidiário, na impunidade e “encobertos”, todos os que lucram com a
continuidade do delito, inclusive ele. É com idêntico motivo INCOSCIENTE e
egoísta de evitar “incômodos” e de desfrutar das vantagens estabelecidas
ideologicamente que muitos olham para o SISTEMA COLETIVO da roda formada por
vários que tocam, cantam, batem palmas, etc., e vêem apenas DOIS, “dançando”,
“lutando” ou “jogando”. De qualquer modo, eis aí um efeito do PRINCÍPIO
MERCANTILISTA em ação.
Estou provando racionalmente e através de fatos experimentais, que sob
influência da cultura mercantil vemos MENOS onde há MAIS e que alguns escritores
influenciados “resolvem” o problema da falta de definição da capoeira
aproveitando-se da indefinição para dar vazão ao INTERESSE mercantil,
INCONSCIENTE ou consciente, de entulhar o mercado com ficções e baboseiras
destinadas a seduzir e a envolver consumidores imaturos. Tal postura “satisfaz”
idênticos anseios dos que criam e recriam DISCURSOS sobre a capoeira e outros
assuntos.
Influenciadas pelo mercantilismo, que evoluiu dos modos grosseiros e evidentes
de ESCRAVIZAR, para sofisticados métodos psicológicos, as pessoas ACREDITAM não
serem racistas nem preconceituosas, AGINDO na prática, CEGAS pelo racismo e
preconceitos. Por isso, provo que não ANSEIO pelo mercado dos leitores
superficiais ao apresentar ao leitor a CAPOEIRA MÍSTICA, propondo ANTES, não que
ACREDITE em mim, mas que se faça um estudo analítico, profundo e estrutural da
PRÁTICA da capoeira, com o fim de resolver o problema de sua indefinição.
Atentos, para não nos deixar arrastar por anseios mercantis, talvez possamos
conseguir esse OBJETIVO JUNTOS ou fracassar, dependendo de desnudar ANTES,
nossos preconceitos para os compreendermos melhor e superá-los. Em seguida
falaremos de Capoeira Mística, porque sem esta PRÉVIA providência iríamos
discuti-la CRENTES que possuímos razão, mas sem usá-la, para preservar PRÉVIOS
conceitos (preconceitos) e contrariando importante PRINCÍPIO da exposição
racional que é o da necessidade de definição dos termos usados no encadeamento
das idéias.
A IDEOLOGIA MERCANTIL
GENERALIZAR é tornar geral, vulgarizar, tornar comum a muitos indivíduos
qualidades de poucos ou fictícias. REDUZIR é tornar particular o que é geral;
SUPERFICIAL o que é PROFUNDO, menor o que é maior; MENOS o que é MAIS; é
restringir o que é mais amplo, ou separar, desagregar algo de uma combinação, de
um conjunto ou composto. De ordinário realizamos freqüentemente essas duas
operações mentais de modo consciente ou inconsciente, não só para aprender e
compreender os mistérios da vida, como também para dar a APARÊNCIA superficial
de possuir compreensão e sabedoria, com o fim de classificar ou JULGAR pessoas e
coisas atendendo a propósitos que não nos orgulhamos de ter e por isso
insistimos em não os VER. O racismo e os preconceitos se apresentam para atender
a tais propósitos. Ora, na história da humanidade se tem generalizado as
virtudes boas de poucos INDIVÍDUOS a um COLETIVO, seja este um grupo social,
classe, povo ou “raça”, e a outro grupo social, povo, classe ou “raça”, se tem
generalizado os defeitos e desdouros... Sob o comando do nazismo de Hitler, se
atribuiu aos alemães a “pureza da raça”, as qualidades da inteligência, da
nobreza de caráter, a bondade cristã etc., de tal modo que NÃO VIAM as
atrocidades cometidas contra os semitas e outros, aos quais se atribuiu a
INFERIORIDADE e a perfídia. Na Idade Média, aos que nasciam na nobreza se
atribuiu “sangue azul” e virtudes ideais; aos plebeus a inferioridade vulgar.
Muitos da elite burguesa atual pensam como nobres medievais, e os comunistas,
socialistas, anarquistas e democratas, na PRÁTICA adeptos de um paternalismo
safado e oportunista, generalizam a INDIVÍDUOS de classes menos favorecidas a
gana de produzir riquezas e as virtudes da dedicação ao trabalho, que nem todos
têm; à média e à alta burguesia generalizam o parasitismo social. Quando
generalizamos virtudes “boas e superiores” a um grupo, classe, categoria de
pessoas ou povo ao qual pertencemos, e as deficiências ou “inferioridades” a
outros, sejam grupo, classe ou povo, reafirmamos arrogante CRENÇA de sermos
genericamente MELHORES e superiores a outros com os quais nos comparamos. Estes
são menosprezados já na generalização, pois com ela satisfazemos INCONCIENTE
ANSEIO por grandeza, sucesso e superioridade... Não é muito difícil perceber que
essa arrogante postura divide os homens entre “superiores” e “inferiores” e
dissemina o ódio, porque os que ACREDITAM ser genericamente MELHORES
consideram-se no DIREITO de submeter outros ao seu PODER. Os outros, por sua
vez, LUTAM, para conquistar e gozar os privilégios da “superioridade” genérica
que também ACREDITAM merecer. Essa é a ESTUPIDEZ crônica que se apresenta na
história da humanidade, e a CEGUEIRA que causa impede os homens de VER, que na
realidade TODAS as criaturas da natureza e pessoas possuem ESPECÍFICAS virtudes,
funções, artes, atividades e encargos, e na especialidade umas apresentam MELHOR
desempenho que outras. Um colibri, por exemplo, voa MELHOR do que eu, além de
ser MAIS bonito e delicado. Uma minhoca vive MELHOR, com a extremidade onde
possui boca e se supõe a “cabeça”, enfiada na terra, do que eu. Pelé sempre
jogou bola MELHOR do que eu e assim por diante... Reconhecer isso, porém, não
torna esses entes genericamente melhores do que eu. E até posso ACREDITAR que
sou genericamente melhor do que a minhoca e esmagá-la com a sola do sapato, mas
isto não me torna mais competente que ela na FUNÇÃO que realiza na natureza. Ao
contrário, o ato desnecessário de força contra a minhoca só revela minha
IGNORÂNCIA diante da natureza, grande covardia perante seres mais frágeis e
imensa ESTUPIDEZ.
Então, porque a covarde ESTUPIDEZ é preservada de modo velado, consciente ou
inconscientemente, a escravidão é prática tão antiga quanto a humanidade e
beneficia sempre aos que ACREDITAM desfrutar, por “direito”, os privilégios do
PODER mantido pela FORÇA. A escravidão se deu entre todos os povos e até entre
nativos do Brasil, da África e de outras partes. Na Antiguidade e Idade Média,
as pessoas caíam VÍTIMAS da escravidão, em geral, tornando-se presas de guerra,
de raptos, de pirataria, por nascerem filhos de escravos, por não pagar dívidas,
por serem crianças rejeitadas e vendidas, por adesão voluntária em caso de
fome... Não se fazia distinção entre quem podia ser escravo e pessoas de
qualquer cor ou nação eram vitimadas. A idéia de escravizar outrem não repugnava
ninguém, pois era considerada natural, normal, razão pela qual NINGUÉM VIA
motivos para questionar sua imoralidade, até a Idade Moderna e Contemporânea.
Durante a Antiguidade a propriedade de escravos tornou-se símbolo de poder
social, político e financeiro, e foram surgindo MERCADORES especializados em
raptar, capturar, comprar e VENDER homens para atender a esse ANSEIO por poder.
Nos fins da Idade Média, então, na época das grandes conquistas marítimas e
coloniais o PRINCÍPIO MERCANTIL do lucro, da vantagem econômica transformou em
MERCADORIA preferencial, para negociar, colocar a venda, os humanos de cor
negra. A partir de então, alguns traços da APARÊNCIA SUPERFICIAL, como cor mais
escura, cabelo pixaim, nariz largo e lábios grossos IDENTIFICARIAM o escravo
“normal”, “natural”; homens cujo destino foi preconcebido pelos seus raptores.
Então, o ANSEIO ganancioso e mercantil levou à PRÁTICA a GENERALIZAÇÃO do
conceito “mercadoria” para abranger pessoas nas “propriedades” a que se tinham
direitos legais. A necessidade de mão de obra nas colônias ativou e causou o
desenvolvimento de uma especialização profissional que se abastecia na África.
Deste continente, homens, mulheres e crianças foram violentamente arrancados e
REDUZIDOS a CORPOS sem alma ou de espíritos atrofiados, destinados a trabalhar
na agricultura, na mineração, nas tarefas domésticas e para dar prazer a seus
donos. Portanto, os ANSEIOS interesseiros dos “Judas” que capturavam gente para
vender se locupletavam ao realizar os ANSEIOS dos CONSUMIDORES de conforto, de
lucro, de vantagens e de prazer que tais corpos podiam proporcionar.
O leitor deve verificar de pronto, que não abordo a escravidão como problema
específico de brancos e negros porque não GENERALIZO a virtude da inocência para
uns e a de “culpa” a outros. Não REDUZO uns à “inferioridade moral” nem
GENERALIZO a outros a virtude sublime de mártires históricos. Não abordo o tema
como uma exigência de revanche da “raça inocente” frente à “perversa”, nem da
“classe produtiva” contra a “parasita”. Se a isto fizesse daria vazão à
ESTUPIDEZ racista e preconceituosa, que CEGA e escraviza; dividiria a humanidade
entre bons e maus, segundo o medíocre e delirante PODER de JULGAR e de condenar
que ACREDITARIA ter... Questiono, apenas, qualquer “direito humano” que premia o
USO DA FORÇA animal e irracional, como o desprezo da INTELIGÊNCIA RACIONAL.
Fato inconteste é que, nos fins da Idade Média, com as conquistas coloniais e a
ascensão econômica e POLÍTICA da burguesia, a ESCRAVIDÃO se firmou como
ATIVIDADE RACISTA NA PRÁTICA, ainda que as teorias raciais só surgissem mais
tarde, no século XIX. Os estigmas e os estereótipos que REDUZEM o povo negro a
MENOS, ou à permanente situação de “inferioridade”, se firmaram com a
preferência dada a ele na instituição econômica e escravista de vocação
MERCANTIL. Aí a discriminação se tornou legal, oficial e moral, ao ser
regulamentada como comércio organizado internacionalmente, para atender às
demandas coloniais. JUSTIFICAVA esse comércio canalha e estúpido, portanto, a
satisfação dos ANSEIOS comerciais, econômicos, políticos, ou o oportunismo
safado, típico das almas egoístas. Entre os cristãos da Europa, qualquer
PROBLEMA de ordem moral era estímulo para a elaboração de IDÉIAS racionalizadas,
para mascarar os ANSEIOS mercantis... Uma “boa” IDÉIA, era a que REDUZIA os
negros à inferioridade, destituindo-os de talentos e virtudes típicas da alma
racional. Alegavam, e aí não só os cristãos, que os negros eram bárbaros,
canibais, quase como animais e que a escravidão só lhes faria bem, pois os
redimia levando-os “à salvação eterna” (leia-se os Sermões XIV e XXVII do
Rosário, do Padre Antônio Vieira). Propagava-se essa idéia que muitos REPETIRIAM
como cúmplices da infâmia, entre eles escritores e educadores sequiosos de
status econômico, social e político, também “religiosos”, “cientistas” e outras
“autoridades” intelectuais. Ibne Kaldum, tido como grande historiador muçulmano
do séc. XIV divulgou que “os negros de humano tinham pouco, sendo mais
semelhantes às bestas Irracionais” (A Manilha e o Libambo, 2002, de Alberto da
Costa e Silva, p.57). M.Long escreveu: “Penso que não seria desonroso para uma
mulher hotentote ter um orangotango como marido” (O Negro No Brasil, 1999, de
Júlio José Chiavenato, p.73). O reverendo Josiah Priest, em 1852 declarou que os
negros não pertenciam á raça humana “sendo de toda evidência que sua
constituição é perfeitamente simiesca” (op. cit., p.74). Em 1781, o Governador
da Virgínia, Thomas Jefferson, se pronunciou sobre as “distinções reais (entre
brancos e negros) que a própria natureza havia criado” e que tornariam os negros
“menos afeitos ao pensamento criativo e à inovação” (Hebe Maria Mattos,
Escravidão no Brasil Monárquico, 2000).
Na cultura MERCANTIL, portanto, a idéia de “inferioridade natural” do negro se
reproduziu, norteando pensamentos e ações. Os que a PRODUZIRAM, mancomunados com
os que a REPRODUZIRAM, espalharam “aos quatro cantos do mundo” que as ATIVIDADES
do negro eram DESPROVIDAS DE INTELIGÊNCIA HUMANA. O tempo passou, e depois de
condicionada, essa idéia passou, sem maiores críticas, para as gerações
seguintes, de brancos, índios, negros e mestiços, de modo que ainda hoje sabemos
de vários incidentes, conflitos e processos porque alguém chamou outro de
“macaco”. Até o povo brasileiro, que possui grande descendência genética e
herança cultural dos negros já foi insultado por estrangeiros que usaram a
expressão “los macaquitos”.
O tempo passou e novas exigências se apresentaram aos que exercitavam ou queriam
exercitar PODER econômico e político, e a ATIVIDADE MERCANTIL se adaptou para
atendê-las, EVOLUINDO para “inocentes” e sutis manifestações conscientes e
INCONSCIENTES de preconceitos velados e de racismo paternalista. E assim
“evoluídos”, alguns escritores, historiadores, folcloristas e cidadãos comuns,
exatamente como ontem, ACREDITAM serem bondosos cristãos ou inteligentes
“liberais” enquanto REPETEM a velada racionalização mercantilista e racista,
segundo a qual, realmente, os negros seriam INCAPAZES de desenvolver um SISTEMA
pleno de coreografia, música, técnica, poesia e beleza artística, tendo o
inteligente OBJETIVO humano de RESISTIR à tentativa de mutilar as virtudes e
talentos do ESPÍRITO africano. Pela idéia mercantilista, negros e índios só
fariam coreografia, música, técnica, poesia e beleza artística acidentalmente e
indiretamente, ao dar vazão ao cabritismo sensual e lascivo, ou quando, como
macacos, IMITARIAM coices de burros e marradas de bodes, nas LUTAS ou conflitos
de FORÇA que tais irracionais travam entre si.
REPRODUZINDO essa idéia se atribui aos negros, a pretensão absurda e pouco
inteligente de criar a bela arte da capoeira, apenas para enfrentar desarmados
as armas de fogo, canhões, cães, espadas, facões, NAVALHAS e paus, normalmente
manejados por ferozes, calejados e valentes homens a serviço da sociedade
escravocrata. Não digo que alguns valentes não tiveram feitos memoráveis usando
a agilidade e a destreza adquirida na capoeira! Digo que esses casos específicos
não deveriam ser GENERALIZADOS com o fim de REDUZIR a MENOS a imensa MAIORIA dos
negros, tanto do Brasil como fora dele, pois muitos combatem a escravidão, a
segregação, o racismo e o preconceito usando alta INTELIGÊNCIA, como José do
Patrocínio, Luiz Gama, Martin Luther King, Nelson Mandela e outros que se
consagraram líderes intelectuais. Em todo o planeta há provas históricas e
óbvias de que a LUTA pela LIBERDADE, através do confronto belicoso, intelectual
ou por resistência pacífica, sempre é com bravura e valentia, sendo que estas
virtudes resultam de disposições específicas do ESPÍRITO e não de uma
generalizada destreza emprestada ao CORPO pela prática de qualquer ginástica. Os
que RESISTIRAM e se empenharam heroicamente na LUTA pela civilidade humana e
contra a escravidão, cada qual a seu modo, não devem ser privados das virtudes
do ESPÍRITO, como valentia e INTELIGÊNCIA, e menosprezados ante a exaltação da
FORÇA ANIMAL e corpórea pelos reprodutores da ideologia mercantil. E creio que
foi para que o genial líder e heróico estrategista militar e guerreiro, Zumbi
dos Palmares, não fosse mais usado como instrumento de menosprezo a outros
homens e mulheres negros, que o Mestre Damião demonstrou ser falsa a idéia dele
ter sido capoeirista (Revista Praticando Capoeira, número 28, p.36). É
ACREDITANDO na inferioridade dos negros e REPRODUZINDO o menosprezo a suas
virtudes culturais e racionais que o indivíduo IDENTIFICA a capoeira como
PORCARIA qualquer; tão inútil à realização de OBJETIVOS espirituais e
INTELIGENTES como outras mercadorias disponíveis no mercado. Para disfarçar ou
“maquiar” as “marcas da cirurgia” que extirpou a virtude ESPIRITUAL dessa
criação dos negros a “embrulham” com lendas e mitos pouco inteligentes, mas
atraentes aos OLHOS CEGOS dos consumidores do mercado racista e preconceituoso.
O SISTEMA
REDUZINDO a capoeira a bem MENOS do que é e privando-a de sua essência
ESPIRITUAL o sujeito “argumenta” que há consagrados sambistas e aplicadores de
pernadas, formidáveis capoeiristas e geniais folcloristas e historiadores
afirmando que pernada é uma forma de capoeira. Aí, oro a Deus pedindo milagrosa
paciência infinita e passo a alertar que existem outros consagrados sambistas e
aplicadores de pernadas, capoeiristas formidáveis e geniais folcloristas e
historiadores afirmando exatamente o contrário! Em seguida pergunto: em quem
ACREDITAR? Se neste ou naquele REPRODUZIMOS um ou outro como papagaios e ficamos
sem saber quem tem RAZÃO. E só pode ter RAZÃO quem prova que tem, RACIOCINANDO,
não REPETINDO o que outros dizem. Aliás, só quem raciocina é capaz de
IDENTIFICAR a razão e quem a USA.
Todavia, ACREDITANDO que alcançarei o milagre da paciência infinita explico que
quando vários elementos de um CONJUNTO se relacionam entre si de modo
ORGANIZADO, essa ORDEM segue PRINCÍPIOS e dizemos que formam um SISTEMA. Quem
afirma que pernada é uma espécie de capoeira, sustenta, em outras palavras, que
o elemento PERNA, retirado do sistema PATO é outra forma ou espécie de pato;
outro pato. Mas já vimos que a perna do pato, integrada a outros elementos como
penas, ossos, músculos, bico, olhos, asas etc., formam um CONJUNTO de PARTES
conjugadas entre si num SISTEMA ORGÂNICO com forma de pato. As PARTES de tal
SISTEMA funcionam na relação entre si, obedecendo a PRINCÍPIOS INTEGRADORES,
sendo por isso que as pernas se movem COORDENADAS com o todo, dando ao corpo um
andar autônomo, cheio de ginga e de bossa, geralmente acompanhados de
espontâneos e alegres quá, quá, quá, quá. Observe, caro leitor, que
inequivocamente as PARTES do sistema realizam os OBJETIVOS DO PATO e não os de
um PORCO como o Napoleão, do livro de George Orwel, “A Revolução dos Bichos”,
que para exercitar PODER se perde nas contradições. Ao se dirigir em direção ao
alimento, o pato não tropeça nos próprios calcanhares nem chafurda na lama, não
por não ter calcanhares e sim porque suas patas não se movem ao acaso nem em
direções opostas, chafurdando na LUTA de uma contra a outra. Pernas são
INSTRUMENTOS que coesas e harmônicas ao SISTEMA permitem ao pato EVOLUIR no
espaço e no tempo quando anda, nada e voa.
Todas as partes fisiológicas e comportamentais do SISTEMA pato têm as ATIVIDADES
integradas para a realização dos OBJETIVOS ou fins do SISTEMA “pato”. Sendo
assim com o pato, devemos ponderar que o SISTEMA “capoeira” tenha sido criado e
desenvolvido por negros para servir aos OBJETIVOS dos seus criadores, não os de
seus opressores. Se a isto negarmos estamos destituindo os negros da
inteligência. Afirmar que a capoeira, originalmente realiza os interesses dos
mercantilistas escravocratas é o mesmo que matar o pato e arrancar uma de suas
pernas para dá-la ao porco. Ela não mais pertence ao SISTEMA pato, porque não
obedece aos originais princípios de funcionamento nem realiza os OBJETIVOS do
pato, e sim os fins de quem vê nas criaturas de Deus ou da natureza CORPOS
destituídos de alma, que ele pode esmagar, matar e mutilar impunemente para
satisfazer seus interesses egoístas. Com relação à pernada, já vimos que nunca
foi PARTE da capoeira, porque nesta nunca houve golpe chamado pernada. Mas se
alguém insiste em dizer que ela já foi sim, PARTE da capoeira, e ainda por cima
oferece como “prova” uma REPETIÇÃO do que outro disse, desisto, para não perder
mais tempo com cabeçudos.
Afinal, milagres não ocorrem como eu gostaria e minha paciência se esgota fácil
diante de quem sequer percebe o mínimo, isto é, que se um dia foi, então não é
mais.
Ora bolas!
Jorge Melchiades Carvalho Filho